João Américo

Publicado pela ed. Moinhos de Vento


Desde que chegou ao colégio, nunca foi de muitas amizades. João Américo era forte, troncudo, e sempre sentava nos fundos da sala. Dizem que a força dele valia por quatro, mas disso a gente nunca pôde saber de verdade. Se ele fosse fracote como o Sardento, todos iam mexer com ele, zombar da sua estranheza. Era mesmo um sujeito muito esquisito, diferente, de um jeito que a gente nunca soube precisar direito o que era.

Danilo, um cara esperto que tinha vindo do interior, era quem melhor sabia tirar onda do grandalhão. “Isso daí não é normal não, é estúrdio, esse daí tem a febre do bode”, ele dizia. E a gente se acabava de tanto rir. Ninguém sabia o que era a tal da febre do bode, mas era só o Danilo falar e todo mundo achava graça. É claro que tudo isso era escondido, enfrentar ninguém enfrentava.

Com o tempo, lembro que foi surgindo todo tipo de comentário. Ricardo, curioso, sempre pensava que o tal do João Américo era viciado em drogas. “Isso ai é maconha, ele tá sempre aéreo, altas viagens, pode apostar”. Mais de uma vez Ricardo se aproximou, falando de drogas, perguntando se ele bebia, se fumava, e o cara calado, na dele, dizia apenas que não, não tinha usado nada disso.

Paulina dizia que ele era calado daquele jeito porque era amante da professora de português. “É quieto desse jeito pra não dar pista, mas eu tenho quase certeza que já vi os dois juntos, passeando na praia”. Quando Paulina falou, muita gente acreditou, porque o tal do João Américo só tirava dez nas provas de português. Ele nunca errava sequer uma única questão. E olha que a professora era exigente, não brincava no serviço, cobrava de verdade, todo mundo se penava de medo na hora da prova.

Havia também quem dissesse que ele já tinha cometido mais de um assassinato. “Ele é troncudo assim pra não dar bola. Isso é silêncio de morte, coisa escondida, lá no bairro o pessoal comenta”, acho que era Adriano quem vinha com essa conversa.

No final das contas, cada um dizia uma coisa diferente, e todos nós ficávamos confundidos. As versões se somavam, se acrescentavam, aumentavam e diminuíam, e todos tínhamos medo do João Américo. Perto dele, sempre sobrava um lugar vazio, ninguém sentava. João Américo era como um boi, entrava e sai da sala com aquele jeito manso. Tinha uma força escondida que todos nós sabíamos, ele não dava trégua, vigiava, ninguém devia mexer no que era dele.

Um dia, acho que ele mesmo começou a ficar enfadado daquele jeito encorpado que ele tinha. Numa aula de matemática, lembro que ele disse o seguinte: “Essa professora dando aula, até parece que o mundo todo pode ser colocado numa fórmula. Mas nunca é assim. Existem os acidentes, o inesperado, as mil coisas que não podem ser calculadas”.

No outro dia de manhã, soubemos que a professora de matemática teve um acidente de carro e faleceu. Foi ai que começaram a acreditar que João Américo era vidente. Maria Clara, a mais religiosa da classe, metida em alguma religião protestante, sempre se benzia quando chegava perto dele, falava de pactos com o demo, o inimigo. Tinha muita gente que ria dessas histórias, eram tolices, coincidências.

Depois do incidente, acho que João Américo ficou mais na dele do que de costume, não dizia nada. E tinha gente que preferia desse jeito, ele calado, fechado em si mesmo, só assim pra não prejudicar ninguém. Passaram-se duas semanas, e não se escutou ele dizer uma palavra.

Quando João Américo voltou a falar, foi para criticar o coordenador do colégio que era um sujeito realmente detestável, e vivia sacaneando muitos alunos. Foi ele abrir a boca, e todo mundo que tava do lado parou para escutar. Eu tentei decorar cada palavra, fazia questão, os ouvidos atentos: “Esse coordenador pensa que pode fingir sempre. Quando um pai de aluno aparece, ele vive sorrindo, querendo mostrar simpatias. Acha que ensinar é seguir cartilhas, deixar os alunos em silêncio, tudo conforme as aparências. Qualquer dia desses vão descobrir alguma coisa errada no colégio e o teatrinho dele se desmancha”.

Passaram-se meses, as aulas terminaram, nada aconteceu, e todos começaram a acreditar que João Américo não passava de um sujeito corpulento e abobado. Quando as aulas voltaram no ano seguinte, João Américo não estava mais lá e soubemos que o coordenador tinha sido despedido por ter engravidado uma aluna de apenas quinze anos. Os familiares tinham, inclusive, colocado o caso na justiça. A garota se chamava Maria Cristina Américo.




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